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    6 de setembro de 2015

    ENFERMEIRAS PÁRA-QUEDISTAS RELATOS II

    A Enfermeira que Vinha do Céu


    Se o comboio avança em direcção à Gare do Oriente porque me dá a ideia que recuo no tempo? Daqui a pouco uma mulher por entre a multidão avançará para mim empunhando a boina verde de uma farda há muito desmobilizada, distintivo, noutro tempo, de uma tropa de elite, identificação hoje para um encontro agendado.
    Todo o encontro cria uma ruptura. O que era até ali deixará de o ser como era. Passamos às vezes por uma pessoa na rua e tudo muda na nossa vida. Alguém que nos diz bom-dia de uma forma diferente, ou nos dá um sorriso, ou nos olha com um brilho de inteligência no olhar e nos garante que o Universo é habitado. Nunca agradecemos a uma pessoa assim que muda a nossa vida. Ela esfuma-se no tempo. Afunda-se na vida. Perde-se no labirinto do mundo.
    Se voltamos a passar por ela nem a reconheceremos. Ela apenas passou por nós, porém, ao passar por nós fez-nos desviar a atenção, iluminou com um relance do seu olhar um pensamento sombrio, e esse seu pequeno impacto fez-nos atrasar o minuto fatal em que iríamos cometer um erro irremissível; desviou a nossa trajectória o suficiente para salvar o nosso dia.
    E se uma pessoa assim tiver interferido na trajectória da nossa vida de uma forma consciente e calculada por ter imposto a si mesma esse dever, quando tudo o mais à sua volta se resumia à primária luta da sobrevivência? Uma pessoa cujo impacto na nossa vida nos desviou da trajectória da própria morte.




    Eu daqui a pouco a descer pelas escadas rolantes, e o ribombar dos comboios por cima de mim. E a ideia que recuo no tempo. E a certeza que vou encontrar no piso inferior uma longa fila de veículos militares.
    E eu, eu fora de mim, imaginando-me no lugar do piloto do helicóptero a calcular o espaço entre os ramos das árvores para aterrar na picada, e a ver um soldado prostrado com as marcas da explosão a irradiar do seu corpo.
    Eu agora a olhar para cima com os olhos do enfermeiro Costa. Corajosamente desarmado, segurando o saco do soro e olhando para o céu em busca do socorro.
    Eu agora envergando a T-shirt branca e sentindo o coração ansioso da enfermeira no meu peito. Eu ansioso por chegar, ansioso por me antecipar à Morte.
    Eu agora no meu próprio corpo, deitado de costas no chão a ver chegar a enfermeira correndo para mim.
    Eu com frio.
    Tanto sol e eu com frio.
    Tanto frio.



    Entretanto voltei: o presente impõe-se à memória e traz-me as linhas geométricas da cidade vistas da janela do comboio. Se foi Deus que fez o mundo, não criou uma única linha recta, uma só curva perfeita, ofereceu-nos o caos, e nós vamos destruindo essa aconchegante liberdade com a árida prepotência da geometria. Ou então são saudades de África.
    Imagino a Gare do Oriente, onde o comboio vai parar dentro de minutos, que tantas vezes achei uma arrojada criação fitomórfica a quebrar a inorgânica monotonia urbana, e que agora antecipo como um desenho repetitivo, reduzido ao arremedo simétrico de um bosque. São saudades de África: dorme-se uma noite na desordem corajosa da mata eterna, e aprende-se a desprezar a fútil esquadria dos jardins, a domesticada ordenação da arquitectura urbana.
    Quem nos vir daqui a pouco, frente a frente, eu e a enfermeira pára-quedista à mesa de um restaurante, jamais imaginará que o que nos separa não será o tampo da mesa, serão 37 anos de vida e uma guerra. A mesma guerra que fez com que as trajectórias das nossas duas vidas se encontrassem.
    Há, evidentemente, alguns factores que reduzem o grau de imprevisibilidade desse nosso primeiro encontro; mas neste momento, quando o comboio já está quase parado na plataforma de embarque da Gare do Oriente, só consigo pensar que foram precisos largos séculos de história colonial e duas trajectórias erráticas, como erráticas são sempre as trajectórias dos seres humanos, para nos encontrarmos no preciso lugar onde uma mina anti-pessoal terrestre aguardava há alguns dias pela minha bota esquerda. E isso é algo que transcende o meu poder de cálculo de probabilidades.
    E onde aconteceu tudo isso? Numa picada perdida do norte de Moçambique ou num lugar recôndito da minha imaginação?
    Eu com frio e o sorriso cálido da enfermeira. Eu na solidão absoluta perante a Morte e um sorriso que me garantia mais do que a certeza de que o Universo era habitado. A certeza que, mesmo quando tudo parece ter descido ao mais baixo patamar da humanidade, a esperança pode ser-nos trazida por um cândido sorriso de mulher.
    E o Alfa parou.
    Não sei em que ano parou. Não sei em que mundo.
    Vou sair por aquela porta para a plataforma de embarque com a convicção de que a realidade não me será suficiente. Mas a realidade nunca é suficiente: é para isso que há sonho, música e poesia.
    Era uma vez uma guerra. Era uma vez uma enfermeira que vinha do céu.
    Ela chegava e a esperança de vida aumentava.
    Vinha do céu e pousava de helicóptero com subtilezas de anjo.
    Ultrapassava a Morte e levava-nos num abraço de Pietá.
    Amava-nos sem saber a enfermeira da T-shirt branca.



    A Grande Prostituta pairava sempre sobre nós, e quando tombávamos ajoelhava-se para nos invaginar. Às vezes o enfermeiro Costa tentando a ternura: - Não me morras filho da puta! E quando a vida não era mais do que um fio, ansiávamos que a salvação viesse do céu.
    E vinha!
    Vinha de T-shirt branca e levava com ela os nossos camaradas feridos, e durante uns breves minutos o terror dava lugar a uma leve sensação de doçura.
    E era então que me apetecia chorar; que um homem até aguenta a dor e o medo da morte mas não resiste à generosidade de uma mulher.
    Levou o Lemos, levou o Raimundo, levou-me a mim. E um dia, quando parecia que tudo o que passei na guerra se tinha desvanecido para sempre, dei por mim a desenhá-la com palavras, como personagem de um livro. Com palavras que trouxe a vida inteira comigo.
    Hoje a mulher por detrás da personagem ocupará o seu lugar aferindo a ficção pela realidade, deixará de ser uma silhueta desvanecida de uma foto antiga no heliporto de Mueda, a personagem construída a partir da fantasia literária e das memórias difusas de um velho soldado, a personagem que um leitor do livro levou a sério e procurou no labirinto do mundo até a encontrar.
    Sairá hoje das páginas do livro para falar com o autor.
    E o Alfa parou.
    - Olá Piedade!
    - Olá Manuel!





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