Fez 15 anos no passado dia 03 de Outubro que, num trágico acidente de aviação, em Timor-Leste, perderam a vida dois nossos camaradas: 1SAR/PARA Vitorino Fernandes e SOLD/PARA José Lopes.
Com este artigo não pretendo avivar a memória daqueles que passaram pelo drama vivido nessa altura, pois certamente esta data não está esquecida, mas apenas, e porque me vem à memória, “… Aquele silêncio…”, transcrever alguns extractos do diário que me acompanhou, durante os seis meses que durou a missão e que serviu, como é natural de um amigo confidente, para nele depositar as vivências, os sentimentos, as alegrias e tristezas que normalmente fazem parte da história pessoal, mas que, como neste caso, penso poder servir para expressar um sentimento comum a muitos dos que acompanharam e viveram este drama que enlutou não só o Batalhão mas também o País.
Dia 3de Outubro de 2000 – São duas horas da manhã de 04OUT. Estou extenuado, mas não posso deixar para mais tarde esta obrigação a que me propus no início da missão, a de tentar descrever neste diário os factos importantes e marcantes deste período.
Infelizmente este acidente jamais esquecerei. Será necessário descreve-lo?
Estou de serviço ao Estado-Maior/2ºBatalhão de Infantaria Pára-quedista juntamente com o CAP Gonçalves. Recebo uma chamada via NERA (Telf Satélite) do CAP Ribeiro que se encontra no Posto de Comando avançado do Batalhão em Same. Quando atendo, ele diz-me: “Rodrigues tome atenção ao que lhe vou dizer…”- entretanto pede-me para aguardar pois foi chamado ao rádio. Fico alerta e deduzo que algo de grave se passou. Logo que retoma a comunicação informa-me que caiu um helicóptero, para mandar cortar todas as comunicações com o exterior, excepto VHF e NERA, restringir a informação ao pessoal do Estado-Maior, mandar regressar ao aquartelamento todo o pessoal que se encontrava no exterior assim como proibir as saídas. Estas informações são passadas ao CAP Gonçalves e inicia-se um conjunto de acções tendentes a concretizar as directivas recebidas.
Eram 17H35 quando recebi a notícia sendo difícil descrever o ambiente de angústia que se abateu sobre as pessoas que tomaram conhecimento da situação face ao desconhecimento de pormenores que permitissem avaliar a gravidade do acidente. Havia feridos? Mortos? Quantos? Quem? O helicóptero caiu ou foi abatido?
As informações foram chegando e cerca das 18H30 sabe-se a identidade dos militares envolvidos no acidente, mas continua a alimentar-se a esperança de que sejam apenas feridos. Contudo, essa esperança rapidamente se desvanece e somos confrontados com a terrível notícia de que o 1SAR VITORINO FERNANDES e o SOLD JOSÉ LOPES faleceram no acidente ficando ainda ferido sem gravidade o SOLD FONSECA. O piloto do helicóptero sai ileso. Relativamente às causas são desconhecidas até este momento, estando fora de questão que a aeronave tenha sido abatida como inicialmente se pensou que tivesse acontecido.
As horas que se seguiram foram frenéticas, tinha chegado a hora da Secção de Pessoal e principalmente do CAP Ferreira que, juntamente com o CAP Costa do Comando de Sector iniciaram numa hercúlea tarefa para ultrapassar a normal burocracia da ONU.
Sensivelmente pelas 20H30 foram repostas as comunicações com o exterior, no entanto, mais tarde, quando liguei de novo telemóvel já lá tinha uma mensagem vinda de Portugal a perguntar o que se tinha passado.
Infelizmente este acidente jamais esquecerei. Será necessário descreve-lo?
Estou de serviço ao Estado-Maior/2ºBatalhão de Infantaria Pára-quedista juntamente com o CAP Gonçalves. Recebo uma chamada via NERA (Telf Satélite) do CAP Ribeiro que se encontra no Posto de Comando avançado do Batalhão em Same. Quando atendo, ele diz-me: “Rodrigues tome atenção ao que lhe vou dizer…”- entretanto pede-me para aguardar pois foi chamado ao rádio. Fico alerta e deduzo que algo de grave se passou. Logo que retoma a comunicação informa-me que caiu um helicóptero, para mandar cortar todas as comunicações com o exterior, excepto VHF e NERA, restringir a informação ao pessoal do Estado-Maior, mandar regressar ao aquartelamento todo o pessoal que se encontrava no exterior assim como proibir as saídas. Estas informações são passadas ao CAP Gonçalves e inicia-se um conjunto de acções tendentes a concretizar as directivas recebidas.
Eram 17H35 quando recebi a notícia sendo difícil descrever o ambiente de angústia que se abateu sobre as pessoas que tomaram conhecimento da situação face ao desconhecimento de pormenores que permitissem avaliar a gravidade do acidente. Havia feridos? Mortos? Quantos? Quem? O helicóptero caiu ou foi abatido?
As informações foram chegando e cerca das 18H30 sabe-se a identidade dos militares envolvidos no acidente, mas continua a alimentar-se a esperança de que sejam apenas feridos. Contudo, essa esperança rapidamente se desvanece e somos confrontados com a terrível notícia de que o 1SAR VITORINO FERNANDES e o SOLD JOSÉ LOPES faleceram no acidente ficando ainda ferido sem gravidade o SOLD FONSECA. O piloto do helicóptero sai ileso. Relativamente às causas são desconhecidas até este momento, estando fora de questão que a aeronave tenha sido abatida como inicialmente se pensou que tivesse acontecido.
As horas que se seguiram foram frenéticas, tinha chegado a hora da Secção de Pessoal e principalmente do CAP Ferreira que, juntamente com o CAP Costa do Comando de Sector iniciaram numa hercúlea tarefa para ultrapassar a normal burocracia da ONU.
Sensivelmente pelas 20H30 foram repostas as comunicações com o exterior, no entanto, mais tarde, quando liguei de novo telemóvel já lá tinha uma mensagem vinda de Portugal a perguntar o que se tinha passado.
Este foi um dia que infelizmente não será fácil esquecer, apesar de ter sido um interveniente de retaguarda, pois aqueles que tiveram de lidar directamente com os factos estarão sem duvida alguma muito mais sofridos que eu. É previsível que as emoções mais intensas ainda estejam para ser vividas nos próximos dias.
Dia 5 de Outubro de 2000 – Mais uma data marcante na minha vida
… Aquele silêncio jamais se apagará da minha memória…
Decorreram ao longo da manhã as cerimónias fúnebres dos nossos camaradas.
Foi celebrada missa pelas suas almas na Sé Catedral de Díli. Além dos militares das diversas Nações presentes no território, a catedral, que não é pequena, estava completamente cheia com Timorenses, gente anónima que denotava uma grande fé nos rostos carregados de sofrimento, fruto, sem dúvida, das recordações dos trágicos acontecimentos vividos há um ano atrás por este povo martirizado e tão profusamente relatados ao mundo através dos meios de comunicação e que levaram à intervenção internacional com a inclusão de tropas portuguesas.
Junto ao Altar-mor sobre dois cavaletes de madeiras foram colocadas duas fotografias dos nossos camaradas. É impossível não nos sentirmos olhados pelo Fernandes e pelo Lopes, não conseguia desviar o olhar. Eles estavam lá, no entanto, aquela dor que interiormente me sufoca obriga-me a olhar o céu para que as lágrimas mal contidas não rolem pelas faces. O sofrimento, espelhado nos rostos dos presentes, torna-se mais evidente durante a homilia proferida pelo Capelão Constâncio Gusmão, que de forma simples mas emotiva estabeleceu um paralelismo de sofrimento entre os Timorenses, na sequência dos acontecimentos em 1999 e o sofrimento e angustia que este acidente veio causar aos militares do Batalhão, ao País e principalmente aos familiares dos falecidos. Muitos rostos ficaram molhados, muitos rostos se inclinaram em vão, na tentativa de esconder o sofrimento indisfarçável.
No final das cerimónias religiosas e após intervenções dos responsáveis civil e militar da UNTAET e Comandante do Sector Central, os quais, falando em inglês e descrevendo as difíceis condições de actuação na Operação Cobra, ainda a decorrer, teceram rasgados elogios ao Batalhão Português, foi cantado, em surdina, o Hino dos Pára-quedistas. No bolso do camuflado do Fernandes foi encontrado, na hora da sua …SUBIDA AO CÉU… um papel onde estavam inscritos estes versos que nos dizem tanto a nós Pára-quedistas:
… Aquele silêncio jamais se apagará da minha memória…
Decorreram ao longo da manhã as cerimónias fúnebres dos nossos camaradas.
Foi celebrada missa pelas suas almas na Sé Catedral de Díli. Além dos militares das diversas Nações presentes no território, a catedral, que não é pequena, estava completamente cheia com Timorenses, gente anónima que denotava uma grande fé nos rostos carregados de sofrimento, fruto, sem dúvida, das recordações dos trágicos acontecimentos vividos há um ano atrás por este povo martirizado e tão profusamente relatados ao mundo através dos meios de comunicação e que levaram à intervenção internacional com a inclusão de tropas portuguesas.
Junto ao Altar-mor sobre dois cavaletes de madeiras foram colocadas duas fotografias dos nossos camaradas. É impossível não nos sentirmos olhados pelo Fernandes e pelo Lopes, não conseguia desviar o olhar. Eles estavam lá, no entanto, aquela dor que interiormente me sufoca obriga-me a olhar o céu para que as lágrimas mal contidas não rolem pelas faces. O sofrimento, espelhado nos rostos dos presentes, torna-se mais evidente durante a homilia proferida pelo Capelão Constâncio Gusmão, que de forma simples mas emotiva estabeleceu um paralelismo de sofrimento entre os Timorenses, na sequência dos acontecimentos em 1999 e o sofrimento e angustia que este acidente veio causar aos militares do Batalhão, ao País e principalmente aos familiares dos falecidos. Muitos rostos ficaram molhados, muitos rostos se inclinaram em vão, na tentativa de esconder o sofrimento indisfarçável.
No final das cerimónias religiosas e após intervenções dos responsáveis civil e militar da UNTAET e Comandante do Sector Central, os quais, falando em inglês e descrevendo as difíceis condições de actuação na Operação Cobra, ainda a decorrer, teceram rasgados elogios ao Batalhão Português, foi cantado, em surdina, o Hino dos Pára-quedistas. No bolso do camuflado do Fernandes foi encontrado, na hora da sua …SUBIDA AO CÉU… um papel onde estavam inscritos estes versos que nos dizem tanto a nós Pára-quedistas:
Lá do Céu com valentia
Descem sempre de noite ou dia
São soldados desconhecidos
Boinas Verdes são destemidos
Descem sempre de noite ou dia
São soldados desconhecidos
Boinas Verdes são destemidos
Olhem bem sintam respeito
Eles têm asas ao peito
Cabeça erguida heróis do mar
Boinas Verdes vão a passar
Eles têm asas ao peito
Cabeça erguida heróis do mar
Boinas Verdes vão a passar
Com orgulho em defender
a Nação p’ra não morrer
Lutadores são afinal
Boinas Verdes de Portugal
a Nação p’ra não morrer
Lutadores são afinal
Boinas Verdes de Portugal
Lá do céu a gente pede
P’ra na terra morrer de pé
Dando a vida que Deus nos deu
Boinas Verdes sobem ao céu.
P’ra na terra morrer de pé
Dando a vida que Deus nos deu
Boinas Verdes sobem ao céu.
Terminadas as cerimónias, algumas pessoas começaram a sair da igreja. O Comandante Marquilhas, permanecendo sentado, inclina-se sobre as costas do banco da frente. A emoção e a dor sobrepõe-se ao esforço para suportar as lágrimas contidas até aquele momento e parece-me soluçar. Fica, por momentos sozinho, destacado, exposto aos olhares dos seus subordinados, dos timorenses e dos estrangeiros, que na sua retaguarda se apercebem de quão difícil será esta fase na vida de alguém que, ainda em Portugal e durante a fase da preparação do Batalhão, respondendo a um jornalista, dizia que, “…a sua maior preocupação era trazer de volta a Portugal, sãos e salvos, todos os seus homens…” Tive pena. Esqueci a minha dor, porque senti que alguém sofria ainda mais do que eu, – o meu Comandante, alguém que eu muito admirava e respeitava, que granjeou da minha parte, desde o primeiro contacto, um enorme respeito não só pela sua conduta profissional mas acima de tudo pelo seu carácter humano. Naquele momento senti que não me tinha enganado relativamente à opinião que dele havia formulado desde o início da preparação do Batalhão.
O Pires, que continuava a meu lado ainda no interior da igreja, posso garantir que teve a mesma percepção da situação que eu, e propôs que fôssemos para junto do Comandante. Assim fizemos e ficamos junto dele no intuito de lhe dar algum conforto, dizer-lhe com a nossa presença mais próxima, que não estava só, que também nós e todos os que ali se encontravam comungávamos da mesma dor.
Entretanto e principalmente os timorenses, pessoas anónimas, fazem fila e começam a cumprimentar-nos sentida e comovidamente e, passando depois em frente ao altar onde estão expostas as fotografias dos nossos camaradas, estendem a mão tocam-nas com os dedos e benzem-se. Então, eu e o Pires afastamo-nos para não interferir na manifestação de profunda tristeza que aquela gente anónima quereria enviar aos familiares das vitimas, e ao povo português e da qual o Comandante do 2ºBIPara deveria ser o único e melhor mensageiro.
Findas as cerimónias religiosas dirigimo-nos para o aeroporto de Díli, em Komoro, onde aguardaríamos a chegada dos corpos dos nossos camaradas que, durante este período permaneceram no hospital da ONU e seriam depois transportados para Darwin na Austrália de onde seguiriam para Londres onde um C-130 da Força Aérea Portuguesa os recuperaria com destino a Portugal.
Era meio-dia. As tropas presentes, quer portuguesas quer das restantes nações que constituíam as Forças da ONU em Timor, formaram duas alas ao longo da placa de embarque até ao avião que faria o transporte dos corpos até Darwin, enquanto as entidades civis, das quais destaco Xanana Gusmão, se agrupam próximo do avião e do local onde ficariam depositadas, durante alguns momentos antes do embarque, as caixas metálicas que continham os corpos dos nossos camaradas.
Momento único de conjugação do silêncio profundo que se abateu sobre o aeroporto, com o sentimento geral de consternação e constrangimento. Silêncio esmagador estranhamente quebrado pelo ladrar longínquo dum cão, animais normalmente sossegados e silenciosos mas que naquele momento, talvez estranhando tão insólito silêncio, também ele se tenha apercebido de que algo de dramático se estava a passar.
O coordenador da cerimónia dá a voz de sentido e de novo o silêncio toma conta do recinto e dos arredores. Ouve-se apenas o cadenciado da marcha dos militares que transportam em ombros as caixas metálicas com os restos mortais dos nossos camaradas. Crispam-se as mãos em continência, cerram-se os dentes, rolam algumas lágrimas incontidas, aperta-se o peito em sufoco. Parece uma eternidade até à colocação das caixas metálicas sobre duas mesas localizadas na retaguarda do avião a fim de que, numa breve cerimónia, sejam rezadas algumas orações, sejam condecorados com a medalha da ONU, depositadas coroas de flores e a boina azul da ONU…
…Mas há outra boina que o Comandante de batalhão não se esqueceu de depositar, aquela que une todos os Pára-quedistas portugueses e que todos amamos, a BOINA VERDE pertencente a cada um dos nossos colegas. Após este significativo gesto, o Comandante Marquilhas deslocou-se em marcha “Pára-quedista” para um dos lados e voltando-se para os nossos camaradas que ali jaziam, numa atitude de raiva incontida, de iluminação, energia e coragem, em plenos pulmões e perante os incrédulos e atónitos estrangeiros, gritou para resposta dos pára-quedistas portugueses presentes na cerimónia:
- PÁRA-QUEDISTAS!
- O QUE SOMOS?
- AMIGOS
- O QUE QUEREMOS?
- ALVORADA.
- O QUE AMAMOS?
O PERIGO.
- O QUE TEMEMOS?
NADA.
- EM POSIÇÃO!
- JÁ.
Foi o fim do silêncio, do gelo que cada um sentia, apesar do calor sufocante que aquela hora do dia caía sobre o aeroporto. As respostas gritadas pelos pára-quedistas portugueses ali presentes, às perguntas do Comandante Marquilhas, davam corpo ao Grito dos Pára-quedistas que quebrou o silêncio insalubre que se fazia sentir naquelas terras tão longínquas da pátria. Foi o libertar de toda a energia acumulada e contida até aquele momento. Foi o expressar do fim dum pesadelo. Foi o sentir que tudo vale a pena, até, infelizmente a morte. Naquele momento senti que se a minha vez de estar ali deitado sobre aquela mesa de madeira, com a boina verde a cobrir-me a cara, chegasse, este grito de glória aos pára-quedistas seria suficiente para dignificar a minha presença naquele teatro de operações e ter dado a vida por uma causa dignificante. Estou certo que este momento ficou para sempre gravado na memória de todos os que presenciaram esta cerimónia. Não estávamos vencidos, o silêncio esmagador dos momentos anteriores não conseguia calar a nossa força interior, a vontade, o desejo de gritar até ao limite da nossa voz, a rouquidão, que a morte não pode vencer se tivermos amigos que nos acompanhem na despedida, desta forma tão viva e demonstrativa de ser Pára-quedista. É nestes momentos em que os cabelos dos braços se levantam, os músculos ficam tensos e preparados para agir, que nós sentimos que somos capazes de tudo ultrapassar, até a morte…
Aquele “Grito do Pára-quedista” foi o apaziguar das nossas almas, o regresso à nossa paz interior, à reconciliação, à união entre os sentimentos mais humanos de todos os presentes, o fim da raiva interior que se tinha apoderado da minha mente, o fim dos sentimentos mais egoístas, a resposta para as questões que me consumiam (vale a pena…? Porquê ao Fernandes, que só muito tarde se decidiu a integrar a missão…? Foi acima de tudo uma demonstração da nossa força e vitalidade e foi entendido, por cada um à sua maneira, como a despedida mais digna para qualquer Pára-quedista.
Pouco tempo depois a rampa do avião fechou-se e este quebrou, num barulho ensurdecedor típico dos Caribus, uma vez mais, o silêncio que se tinha abatido sobre o aeroporto de Komoro em Díli e… mais dois… BOINAS VERDES SOBEM AO CÉU…
O Pires, que continuava a meu lado ainda no interior da igreja, posso garantir que teve a mesma percepção da situação que eu, e propôs que fôssemos para junto do Comandante. Assim fizemos e ficamos junto dele no intuito de lhe dar algum conforto, dizer-lhe com a nossa presença mais próxima, que não estava só, que também nós e todos os que ali se encontravam comungávamos da mesma dor.
Entretanto e principalmente os timorenses, pessoas anónimas, fazem fila e começam a cumprimentar-nos sentida e comovidamente e, passando depois em frente ao altar onde estão expostas as fotografias dos nossos camaradas, estendem a mão tocam-nas com os dedos e benzem-se. Então, eu e o Pires afastamo-nos para não interferir na manifestação de profunda tristeza que aquela gente anónima quereria enviar aos familiares das vitimas, e ao povo português e da qual o Comandante do 2ºBIPara deveria ser o único e melhor mensageiro.
Findas as cerimónias religiosas dirigimo-nos para o aeroporto de Díli, em Komoro, onde aguardaríamos a chegada dos corpos dos nossos camaradas que, durante este período permaneceram no hospital da ONU e seriam depois transportados para Darwin na Austrália de onde seguiriam para Londres onde um C-130 da Força Aérea Portuguesa os recuperaria com destino a Portugal.
Era meio-dia. As tropas presentes, quer portuguesas quer das restantes nações que constituíam as Forças da ONU em Timor, formaram duas alas ao longo da placa de embarque até ao avião que faria o transporte dos corpos até Darwin, enquanto as entidades civis, das quais destaco Xanana Gusmão, se agrupam próximo do avião e do local onde ficariam depositadas, durante alguns momentos antes do embarque, as caixas metálicas que continham os corpos dos nossos camaradas.
Momento único de conjugação do silêncio profundo que se abateu sobre o aeroporto, com o sentimento geral de consternação e constrangimento. Silêncio esmagador estranhamente quebrado pelo ladrar longínquo dum cão, animais normalmente sossegados e silenciosos mas que naquele momento, talvez estranhando tão insólito silêncio, também ele se tenha apercebido de que algo de dramático se estava a passar.
O coordenador da cerimónia dá a voz de sentido e de novo o silêncio toma conta do recinto e dos arredores. Ouve-se apenas o cadenciado da marcha dos militares que transportam em ombros as caixas metálicas com os restos mortais dos nossos camaradas. Crispam-se as mãos em continência, cerram-se os dentes, rolam algumas lágrimas incontidas, aperta-se o peito em sufoco. Parece uma eternidade até à colocação das caixas metálicas sobre duas mesas localizadas na retaguarda do avião a fim de que, numa breve cerimónia, sejam rezadas algumas orações, sejam condecorados com a medalha da ONU, depositadas coroas de flores e a boina azul da ONU…
…Mas há outra boina que o Comandante de batalhão não se esqueceu de depositar, aquela que une todos os Pára-quedistas portugueses e que todos amamos, a BOINA VERDE pertencente a cada um dos nossos colegas. Após este significativo gesto, o Comandante Marquilhas deslocou-se em marcha “Pára-quedista” para um dos lados e voltando-se para os nossos camaradas que ali jaziam, numa atitude de raiva incontida, de iluminação, energia e coragem, em plenos pulmões e perante os incrédulos e atónitos estrangeiros, gritou para resposta dos pára-quedistas portugueses presentes na cerimónia:
- PÁRA-QUEDISTAS!
- O QUE SOMOS?
- AMIGOS
- O QUE QUEREMOS?
- ALVORADA.
- O QUE AMAMOS?
O PERIGO.
- O QUE TEMEMOS?
NADA.
- EM POSIÇÃO!
- JÁ.
Foi o fim do silêncio, do gelo que cada um sentia, apesar do calor sufocante que aquela hora do dia caía sobre o aeroporto. As respostas gritadas pelos pára-quedistas portugueses ali presentes, às perguntas do Comandante Marquilhas, davam corpo ao Grito dos Pára-quedistas que quebrou o silêncio insalubre que se fazia sentir naquelas terras tão longínquas da pátria. Foi o libertar de toda a energia acumulada e contida até aquele momento. Foi o expressar do fim dum pesadelo. Foi o sentir que tudo vale a pena, até, infelizmente a morte. Naquele momento senti que se a minha vez de estar ali deitado sobre aquela mesa de madeira, com a boina verde a cobrir-me a cara, chegasse, este grito de glória aos pára-quedistas seria suficiente para dignificar a minha presença naquele teatro de operações e ter dado a vida por uma causa dignificante. Estou certo que este momento ficou para sempre gravado na memória de todos os que presenciaram esta cerimónia. Não estávamos vencidos, o silêncio esmagador dos momentos anteriores não conseguia calar a nossa força interior, a vontade, o desejo de gritar até ao limite da nossa voz, a rouquidão, que a morte não pode vencer se tivermos amigos que nos acompanhem na despedida, desta forma tão viva e demonstrativa de ser Pára-quedista. É nestes momentos em que os cabelos dos braços se levantam, os músculos ficam tensos e preparados para agir, que nós sentimos que somos capazes de tudo ultrapassar, até a morte…
Aquele “Grito do Pára-quedista” foi o apaziguar das nossas almas, o regresso à nossa paz interior, à reconciliação, à união entre os sentimentos mais humanos de todos os presentes, o fim da raiva interior que se tinha apoderado da minha mente, o fim dos sentimentos mais egoístas, a resposta para as questões que me consumiam (vale a pena…? Porquê ao Fernandes, que só muito tarde se decidiu a integrar a missão…? Foi acima de tudo uma demonstração da nossa força e vitalidade e foi entendido, por cada um à sua maneira, como a despedida mais digna para qualquer Pára-quedista.
Pouco tempo depois a rampa do avião fechou-se e este quebrou, num barulho ensurdecedor típico dos Caribus, uma vez mais, o silêncio que se tinha abatido sobre o aeroporto de Komoro em Díli e… mais dois… BOINAS VERDES SOBEM AO CÉU…
Sem comentários:
Enviar um comentário